não cozinho por hobby

0126150911 Nota: esta crônica é adaptada do primeiro e-mail que escrevi a algumas pessoas queridas dando notícias sobre a vida no gélido porém caloroso Maine.

Arrumando as malas nos últimos minutos. Pai e mãe, cuidem do meu fermento de pão! Não esquecer do passaporte, passaporte é o mais importante. Tio, cuida do meu kefir! Pegar todos os cartões de banco. Irmão, use esses pinoles enquanto eu estiver fora! Todos os documentos do doutorado: ok. Irmã, leva esses chás! Computador, celular, carregador do computador, carregador do celular. Cunhada, usa meu maçarico senão ele vai se sentir sozinho! Cachecóis, uma mala só para cachecóis.  Ah, irmão: use o açafrão na geladeira! Sapatilha de ballet. Pai, não esquece de levar o capacete da bicicleta. E a Sara, pegou tudo? Nota do futuro: Sara não esqueceu de nada. Ou talvez só ainda não lembrou do que esqueceu.
Fecha a mala. Entra e sai da cozinha amarela e florida. Abraça forte. Engole o choro. Elevador. Carro. Aeroporto. A correria faz parecer que é só mais uma viagem em que a mala a fazer foi deixada para última hora. Mas essa é uma longa viagem. De São Paulo, SP para Bangor, ME. Destino final: Orono, ME. Sim, Maine. Aquele estado que é nos EUA, mas parece que é no Canadá. Sei que lá tem lagostas. Sei que lá tem o Stephen King. Ouvi dizer que dependendo das condições climáticas dá até para ver a aurora boreal. Sei que lá tem a University of Maine. Sei que lá tem o Brian McGill (Parênteses para explicar que o Brian McGill é um ecólogo dos bons que trabalha com coisas parecidas com as que eu trabalho – na verdade é o inverso tá – e que aceitou me receber e colaborar com a pesquisa do meu doutorado. Então eis que o governo brasileiro me deu uma bolsa para um programa chamado sanduíche pra dar um sabor a mais ao tal do doutorado. Então eis que no meio do meu sanduíche apareceu um blog).
Saguão do aeroporto de Bangor. Mas e a mala? A esteira está ali no saguão. Qualquer um chega no aeroporto no mesmo lugar onde você pega a mala. Todo mundo ao redor da única esteira. Todo mundo chegando do mesmo vôo. Todo mundo esperando gente do mesmo vôo. Todo mundo pisa no mesmo carpete verde musgo. Democrático. Livre. É, chegamos na verdadeira América. Pessoas sorrindo. É, chegamos no Maine. Mas ainda temos que chegar ao destino final: Orono, ME. Quando chego na casa: pessoas sorrindo e cozinhando. Lava, corta, frita. Todo mundo na cozinha. Só se fala na tempestade de neve que vem. Neve! Precisa colher o que tem no quintal! Se não colher a neve vai cozinhar antes que a gente possa cozinhar. Menta, brócolis, couve de bruxelas, kale. Kale? Nota mental: descobrir a tradução de kale. Nota mental: parece uma couve só que mais duro. Nota do futuro: segundo o dicionário kale é um tipo de couve, com folhas mais espessas e de margem ondulada (e não descobri equivalente em português). Primeiro fim de semana no Maine: colheita antes da neve, neve, cerveja, caminhada na neve, jogo de cribbage (em breve uma explicação do que é o cribbage), tirar a neve do caminho de casa (shovling em inglês, verbo nunca dantes conjugado pela minha pessoa). Welcome to Maine!
Agora, por que sair de São Paulo e ir para Orono? A pergunta que mais ouvi até então. A segunda pergunta que mais ouvi: “quais são seus hobbies?”. Ouvi só uma vez a pergunta: “como soletra seu nome?”.  Sim, fiz a mesma cara de interrogação que você e respondi: S-A-R-A. Mas os hobbies. Sim, hobbies no plural. Americanos e seu fanatismo por hobbies. Sim, no plural porque um não basta. Ah, como eles levam a sério, sério mesmo. Entram em clubes, grupos de discussão, compram todos os livros a respeito, fazem cursos, sabem quantas horas da semana e anos da vida dedicam à tal atividade. Eu achava que cozinhar era meu hobby. Mas eu cozinho porque eu como. Eu como porque eu preciso. Mas o mais importante é que eu como porque eu gosto de comida. Só não me pergunte qual o tipo de comida que mais gosto. Gosto de comida (boa) ué. Mas não vivo sem queijo, vinho, cerveja, pão, tomate, manjericão e já disse queijo? Eu já criei fermento de pão, kefir, já fiz (quase) tudo que se pode imaginar com um maçarico, já li vários livros sobre técnicas culinárias, já fiz cerveja. Mas parece que para o padrão americano nada disso configura como hobby. Diversão barata (ou nem tão barata assim). O que eu faço no meu tempo livre. O que eu faço quando sinto fome. O que eu faço quando estou feliz. O que eu faço quando estou triste. Não posso fazer nada se fui criada assim. Cortando nhoque. Cheirando manjericão do quintal. Colhendo amora para fazer geleia. Numa casa com panelas de tamanhos industriais. Numa casa com um chinois (porque todo mundo precisa de um) de tamanho industrial (porque eu sou Ribeiro Mortara mas meu sobrenome poderia ser exagero). Filha do Mario do e da Vivi. Sobrinha de seis cozinheiros (sim, incluí o tio que inventou a milanesa de milanesa). Neta da Dona Marta. Dona Marta e sua despensa cheia de vidros de geleia. Mas nunca fiz um curso. Nunca comprei um chinois. Não sei quantas horas da semana gasto cozinhando. Nunca entrei num grupo. É, cozinhar talvez não seja meu hobby, mas é meu estilo de vida.
Se cozinhar é meu estilo de vida não é por acaso que acabei escrevendo sobre o meu sanduíche. Sanduíche? Quando o Brian McGill (aquele do parênteses, meu orientador aqui nesse sanduíche) foi me apresentar na primeira reunião de laboratório explicou que eu estava no meu sandwich year. Como o nome sanduíche faz muito pouco sentido o outro Brian (assim chamado, o outro professor que divide laboratório com o Brian) sugeriu que eu chamasse o meu de lobster year. Lobster year porque aqui no Maine eles não são famosos pelos sanduíches e sim pelas lagostas. Nota mental: Sara, pode ficar tranquila porque no seu novo laboratório as piadas são tão infames quanto no seu laboratório do Brasil.
Se cozinhar é meu estilo de vida não é por acaso que acabei em Orono, ME. Uma cidade de 10.000 habitantes com duas microcervejarias, dois restaurantes tailandeses. Sim, dois de cada. Mas a cidade não é só isso. Tem mais um de cada: um mercado (um porém com vinhos, cervejas, queijos, pães deliciosos, tapioca – pasmem, todos os tipos de farinhas, arroz, condimentos…), um café (com café bom – pasmem), um lugar de hambúrguer, um lugar de sanduíche, um restaurante (supostamente) mexicano, uma (suposta) pizzaria (sem comentários sobre a pizza), uma loja de bicicletas, uma farmácia, uma loja de remos, um studio de ioga, uma feira todo sábado, uma loja de bebidas. Pessoas simpáticas em todos os estabelecimentos. Pessoas usando camisa de flanela xadrez em todos os estabelecimentos. Welcome to Maine!
Se cozinhar é meu estilo de vida não é por acaso que acabei na casa branca na avenida da Floresta, número 32. Pelos meus cálculos 95% das casas de Orono são brancas. Certamente não é por acaso que acabei na casa branca. Cinco pessoas. Dois gatos. Cada um tem seu quarto e todo mundo tem um bom senso de estética, limpeza e culinária. Então a casa é bonita, arrumada e sempre cheira bem porque sempre tem alguém cozinhando. Tem posters dos Beatles, Miles Davis e Jimmy Hendricks nas paredes. Sim, isso é um bom indicativo de que as pessoas escutam música boa e isso em geral acontece na cozinha, o lugar mais frequentado da casa. Ah, a cozinha! Tem luzes de natal o ano todo. Tem panelas de ferro de todos os tamanhos. Tem um bule de ferro só para água do chá. Tem canecas bonitas. Tem chá de todo tipo. Tem tempero de todo tipo. Tem receitas coladas do lado de dentro da porta do armário. Não tem uma faca decente talvez porque a vida não é perfeita. Tem formas de todos os formatos e tamanhos. Tem medidores em gramas, ounces, xícaras e colheres. Tem processador, tem liquidificador, tem máquina de pão, panela elétrica de arroz, máquina de waffle. Não tem um chinoi. Mas sempre tem gente. E sempre que tem gente um gato com fome aparece. Agora além de gato e gente, tem organismos fermentadores sendo cultivados. Fermentadores de pão e fermentadores de iogurte. Minha contribuição para dar mais vida à cozinha.
Parece que dá para fazer um sanduíche, ops, uma lagosta aqui em Orono. Mas ainda não cozinhei uma lagosta. Por enquanto cozinho no café da manhã, no almoço e no jantar. Cozinho ideias do doutorado na cabeça. Cozinho textos do doutorado que num futuro próximo sairão do forno. Cozinho para me manter aquecida no inverno do Maine. Não cozinho por hobby. Cozinho para aprender. Cozinho para sobreviver. Cozinho para me adaptar.
Estou aprendendo. Estou sobrevivendo. Estou me adaptando.
O que mais tenho a dizer até então?
O que eu não gosto daqui: chuva no inverno (chuva a 1°C certamente é pior do que neve a -20°C), do que eles chamam de pizza, do que eles chamam de café, do que eles chamam de abraço, do que eles chamam de suco de limão e vendem no supermercado em garrafas plásticas em formato de limão, do que eles chamam de sistema de medida (porque eu gosto é do sistema métrico!).
O que eu gosto daqui: da cozinha da minha casa, da vista da minha janela do quarto, de cruzar a ponte pra ir pra Universidade, das blueberries do Maine, das IPAs do Maine, de ir à feira aos sábados, de que os seminários de sexta no departamento oficialmente terminam na cervejaria local, e, claro, de discutir com os americanos os benefícios do sistema métrico.

17 comentários sobre “não cozinho por hobby

  1. Sara,
    Estou feliz que a sua mãe postou o seu blog no face, assim tive a oportunidade de deleitar-me com a sua experiência. Aproveite cada minuto e aprenda tudo o que puder, pois como diz o Amyr Klink …”Um homem precisa viajar para compreender o que é seu, para um dia plantar as suas próprias árvores e dar-lhes valor. Conhecer o frio para desfrutar o calor. E o oposto ….” Aproveite as baixas temperaturas, para, um dia, poder curtir o nosso tórrido verão.

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  2. Pouco nos encontramos,mas me lembro de que como seu pai, meu amigo, me ensinou a gostar de algumas coisas boas da cozinha italiana, como comi e gostei de alcachofra na velha e gostosa mesa grande de sua avó Marta, do cheiro gostoso que emanava da cozinha e principalmente de como era gostoso ouvir as explicações quaisquer que fossem, sobre qualquer assunto que fosse, de um dos mais cultos homem que conheci, seu avô Guido. Como ainda tenho em mente momentos inesquecíveis na casa movimentada, sempre de idas e vindas,de risadas boas, de rodas de música, do ping pong, bons tempos..
    Não podia me furtar de fazer um comentário após ler seu blogue, me trouxe à lembrança este clima de aconchego que deve estar vivenciando no Maine,curti demais o que escreveu,parabéns espero que tenha bons e inesquecíveis momentos….abraços

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    • Ronaldo, sabe que uma das vezes que nos encontramos ouvi a história da alcachofra (não estou dizendo que você é repetitivo, que fique bem claro!) e vira e mexe ela me vem à memória. Gosto dela. Gosto porque não é que a gente seja gente refinada que só come comida gourmet, é que a gente gosta de apreciar delícias da vida. Gosto porque sempre valeu a pena esperar a época de alcachofra e todo mundo sentar à mesa para jantar sabe o que: alcachofra. Nem sei se a gente só jantava uma alcachofra cada como minha memória faz parecer. Mas eu só lembro da alcachofra no prato e do pote com o molhinho. Era só o que importava!

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  3. Adorei Sara!!!! Pode ter certeza que seu maçarico não está se sentindo sozinho. Mas estamos sentindo faltada da sua companhia na cozinha, eu, Jorge e o maçarico!

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  4. Adorei seu blog flor!! Essas experiências são muito gratificantes mesmo e nos traz um conhecimento e crescimento pessoal enormes! Vou ficar sempre de olho nas suas aventuras!! Concordo com vc…o sistema métrico é bem melhor!! hahahaha beijão

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  5. Sara, adorei seu blog, continue assim!!
    Sabe que vc me fez refletir sobre várias coisas, pois tbm não tenho hobbies e adoro cozinhar, mas porque tenho fome… Após mais de 20 anos de amizade, percebi q temos mtos gostos em comum!! Hahahah
    E fiquei com vontade de conhecer Orono no Maine!!
    Quando vc voltar, quero organismos fermantadores, hein… Ahhahaha além do kefir!!
    Queremos mais!!
    Bjoss

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  6. Oi Sara, que delícia de leitura! Me identifiquei em diversos pontos deste post, talvez porque sou também de família de cozinheiros, também aficionado por cozinha/cozinhar e estou também vivendo fora do Brasil! Lá na Austrália (porque estou em férias no Brasil) não temos Neve ou Hobbies mas também temos Kale e Tapioca! =D Tantas coisas que eu poderia contar sobre a Austrália em contraste ao seu post que na verdade daria outro post… neste caso talvez eu devesse imitar você e sua amiga Marília criando um blog… no meu caso provavelmente seria: A Cozinha do Músico de OZ! (OZ = Aussie = Austrália/Australiano)

    Continue nos presenteando com esta delícia de leitura! Espero pelo próximo!
    Beijos saudosos!

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